terça-feira, junho 21, 2011

Recensões

A Imobilidade Fulminante
António Ramos Rosa
Porto, Campo das Letras
Colecção: Campo da Poesia - 10

A Imobilidade Fulminante
de António Ramos Rosa

Como num filme, as réplicas da realidade sucedem-se no suporte fictício que o poeta abrange. Ao projectá-las no écran do livro, são apenas as mensagens que têm a forma de palavras e o fundo em liberdade porque, em poesia, os horizontes tendem à abertura e não ao fechamento semântico. As palavras", embora possam vir de uma região subterrânea ou da parte mais alta da cabeça como ondas" parecem justificar a "Imobilidade Fulminante" de António Ramos Rosa. Poderão corresponder ao que cada um sumaria enquanto processo e processador de informações e sensações. Ramos Rosa sublinha: "o poeta é, essencialmente um ser com (os outros) e um ser para (os outros). O movimento de dádiva será libertação e o de recusa ostracismo, o primeiro será esvoaçante, o da imobilidade, fulminante. O poeta parece estabelecer correspondências variadas entre a sua percepção, quer do real, quer do irreal, com as de outros. Tal fenómeno manifesta-se no complexo processo criativo onde é possível constatar a intertextualidade da qual muito dificilmente o poeta consegue desprender-se, pela tendência natural de se constituir um poeta com os outros, respeitando, assim, essa sua intrínseca forma de recusar Narciso. Através da mão que se apresenta como testemunha da manifestação de símbolos que encerra (união, fraternidade, força), o criador contacta directamente com as pessoas e com as coisas: conecta-se ao mundo material, com o qual aprende a distinguir o que a própria mão poderá veicular em si, enquanto portadora de mensagens legíveis e enquanto segmento de continuidade do ser. A postura, o gesto, a forma, o estado, a intenção dos movimentos por ela criados são, talvez, a pessoa que o poeta sente e perde nesse leque de linhas e formas de diferentes perspectivas analisáveis. Se o mundo e o cosmos são incompreensíveis, precisamente porque não abarcamos seguramente a sua génese e a sua finalidade, então e pessoa ( máscara e mão simbólica), tende a revelar-se, mimeticamente, um enigma constante em constante revolução, por descender de um outro muito maior. Cumpre-se, desta forma, a eterna procura: "se o corpo é interdito tu procuras ir até onde poderás ir / para seres já o que não és ainda / Nessa ruptura fulminante em que tu és a tua mão / que palpa o imperceptível e se transforma em arco entre dois domínios heterogéneos e contrários". Temos provas de que existimos. A nossa mão revela-se o fio condutor do mundo, réplica da existência e da linguagem universal: "A tua mão flui com um movimento de música e os seus acordes diluem-se na brancura da página". Não é evidente que a imobilidade que fulmina se confina à mobilidade da mão ou à ausência de movimentos da mesma. A diferença irredutível destes signos é a sua vasta possibilidade combinatória, culminando nas palavras, enquanto conceitos inacabados: "Não pode a mão alcançar o que ela ultrapassa"- Serão então as coisas representadas e as ideias materializadas, as cores palpáveis e os sons acorrentados. Estarão imóveis? "Às vezes é demais dizer uma só palavra / mas haveria uma suspensa e como que interdita um pouco sufocante e de impaciência viva e ela poderia ser a palavra do imediato contacto / com o que sendo ausência é sol de uma nebulosa / E é ela talvez a que nós estamos projectando como a mão visível do encontro". Esta hipótese de dizer como dizemos o que dizemos afunda e faz emergir, concomitantemente, o poeta na sua escrita e o poeta realizando-se na procura do outro que desejaria abranger, atitude esta, ausente, portanto, num processo narcísico: "Às vezes no poema há uma voz que se afoga/ e diz Tu és meu é essa a mais preciosa / porque na própria perda o desejo se levanta / e pode levantar o corpo que se afunda".

Entre a interioridade e o exorcisar de uma consciência de limite e de impossibilidade, Ramos Rosa extende-se na leveza das cores, das tonalidades e dos reflexos, na solenidade dos silêncios, na desenvoltura das imagens fortes: "quadris de argila", "ferida generosa", "árvore indizível", "sílabas brancas e vermelhas", "visceral veludo", "simetrias de fogo" (...). O sentido da existência contrapõe-se ao sentido das palavras e completam-se num paralelismo estabelecido pelo poeta que carrega a sua mão, o seu corpo e, talvez, a sua cruz. A palavra revela-se, não sem limites, o último recurso para atingir a plenitude libertadora: "...O teu corpo estremece antes e depois/ porque o inviolável transgride os limites da precária segurança desse frágil suporte que poderia estalar e desagregar-te / Mas perante a palavra que vai à tua frente / tu sentes o glorioso frémito / da queda na brancura ou num deserto fulminante". Terminamos com o deserto? Nesse local de contemplação e meditação o poeta fica só com as palavras. Sem paredes. Talvez deseje para si a ilusão das formas. Se "é na nudez que o corpo respira", a ausência do que se já formou e passou são ainda os últimos espaços de opacidade. Todavia o poeta procura a transparência e a origem de não sentir o peso do corpo, mas o Big Bang de uma força superior, de uma energia que o atormenta e mantém vivo, leva-o numa viagem de descoberta constante. Ao menos a música, essa linguagem universal, poderá oferecer-lhe um aroma de união com o mundo em que vive, ao qual transmite: "Não tenho mais do que palavras/ Mas as palavras são mais do que palavras / Elas podem ter a força de um vento verde e empinam-se para se arredondarem em transparente melodia". Vale a pena ler este livro de poemas. Vale sobretudo a energia criadora de António Ramos Rosa, alma grande.

Marília Miranda Lopes, Abril de 1998